sexta-feira, 4 de março de 2011

Coração Louco

Nada melhor para começo de conversa que este filme de 2009, ganhador de dois Oscars (Melhor canção original e Melhor Ator - Jeff Bridges).  O roteiro é o de um músico que se depara com o declínio de sua carreira, de sua saúde e com um zilhão de oportunidades não realizadas.

A atuação de Jeff Bridges é primorosa, parece que ele está embriagado durante todo o filme.  Sua casa é sua van.  E o banheiro fica dentro dela, como se percebe nas primeiras cenas.

Seu estilo de vida sem vida, sem vínculos e superficial esconde alguma mágoa?  É difícil perscrutar.  E é de se perguntar se não teve algum problema respiratório com tanta fumaça que inalou durante a gravação da película. Quando não está fumando está bebendo, quando não está bebendo está fumando.  Mas, o mais das vezes, está fazendo as duas coisas. E aí eu me lembro que a principal causa de morte entre alcoolistas são doenças relacionadas ao cigarro.  Bebedores problema costumam ser tabagistas inveterados.

O músico se descuida dos ensaios, das relações com o filho (que se perderam há muitíssimo tempo e que, a duras penas, poderá ser reatada?)  Muito se perde pelo caminho: a fama, a criatividade dos áureos tempos,  um grande amor que o destino caprichosamente lhe apresenta.

O descompromisso é uma constante: com sua própria segurança ao dirigir alcoolizado, com a música (o cantor não comparece aos ensaios e não gerencia suas finanças),  com o pequeno Buddy (perde o menino no shopping, ao parar para beber).

Enfim, nenhuma área de sua vida não está afetada pelo álcool.  Ou melhor, ainda dá para perceber um interior cristalino de sua personalidade, que é afetiva, cuidadosa e ainda criadora (ao preparar os biscoitos para Buddy, ao receber sua namorada Jean e Buddy ao saírem do balão).  Dali é que vem o potencial de transformação que poderá ser catalizado em sua recuperação.

Após um acidente de carro, o médico do Pronto Socorro adverte: "Vamos ser francos, você é um alcoolista".  Mas a letra não entra... E por quê? O momento era propício, um trauma atual, dor, dificuldade respiratória, ou seja, todas as cartas na mesa.  Mas, ainda assim, o discurso do médico não cola... Aqui vai um palpite: melhor seria dizer que ele tem, sim, condições de mudar, estimulá-lo a cambiar de estilo de vida.  Terrorismo não funciona.  Ou funciona muito pouco e pode, isto sim, aumentar a distância entre os bebedores e aqueles que podem ajudá-lo.

Melhor ser acolhedor.  E com perdão do exagero: sempre.

"It's funny how falling feels like flying, even for a little while..."

O refrão da belíssima canção country denuncia um pouco do que Bad Blake e tantas pessoas que sofrem com este problema tão prevalente encontram.  Há um prazer na doença, ainda que menor que nos velhos tempos.  Ainda que seja o prazer do esquecimento, da alienação momentânea...

Pode ser, simplesmente, o prazer da evitação do desprazer (e já não é pouca coisa...)

Enquanto bebe, Bad Blake não percebe que está só, que o tempo está passando, que tem sido diletante e desperdiçado um enorme talento. E assim continua: amanhã acaba sendo o mesmo dia que hoje, só a náusea e que é diferente.

O que faz Bad Blake se tocar é a perda de um grande amor.  Às vezes tem resgate, às vezes não.  Desta vez, não teve. Mas Bad acaba se resgatando.  Deixa de se chamar Bad. Busca os Alcoólicos Anônimos.

Justiça seja feita: nenhum outro grupo que trabalha com dependentes ao longo da história, em qualquer lugar do mundo, fez um décimo do que o AA já fez.  E de graça, ainda de quebra.

Para quem trabalha com dependentes, fica a dica: sempre considerar o apoio do AA - sem qualquer temor de competição.  A colaboração vem para ficar.

Para quem sofre com problemas com álcool, fica a mesma dica: sempre considerar AA.  Mesmo que de outra vez não tenha funcionado.  Os grupos estão sempre mudando. Você também não é a mesma pessoa. Ninguém é.  É o que mostra Bad Blake ao final do filme, em uma paisagem primorosa, ao som de "Crazy Heart" - a busca pela reparação, ao doar seu cache para o pequeno Buddy, e a renúncia ao reencontrar seu antigo amor.

A vida continua.  "Só por hoje", não é como dizem?


*****

Elenco

Jeff Bridges  (Bad Blake)
 Colin Farrell (Tommy Sweet)
 Paul Herman (Jack Greene) 
Maggie Gyllenhaal (Jean Craddock)
 Jack Nation (Buddy)
 Robert Duvall (Wayne) 
Tom Bower (Bill Wilson)
 Ryan Bingham (Tony)
 Beth Grant (Jo Ann)

Ficha Técnica

Título Original: Crazy Heart

País de Origem: USA
Gênero: Drama

Duração: 1 hr 42 min

Ano de Lançamento: 2009

Estúdio: Butcher's Run Films, Relativity Media

Direção: Scott Cooper

Roteiro: Scott Cooper

Produção: Robert Duvall, T-Bone Burnett, Judy Cairo


Veio Na Veneta

veneta | s. f.

veneta (ê)
s. f.

1. Acesso repentino de loucura.

2. Por ext. Mania; tineta; telha.
dar na veneta: vir à ideia.

Então aconteceu assim: veio na veneta a idéia de criar um blog para escrever sobre cinema sob o enfoque de um profissional de saúde que trabalha com dependência química. 

Não sou crítico de cinema e taí uma coisa que não gostaria de fazer: perder a beleza da arte pela racionalidade da anatomia da sétima arte. 

Este é um espaço para sentir-se em casa.  Relaxe, tire os sapatos, faça uma pipoca, escolha um chá. Para aqueles que preferirem guaraná, voilá, guaraná.

Se você enfrenta um problema com qualquer substância psicoativa considere os alertas de não ficar lendo assuntos relacionados à dependência, para não mexer na onça com vara curta.

Para os profissionais, este não é um blog acadêmico. É, antes, um bate-papo, um fórum de trocas.  Nada do que aqui vai tem a pretensão de soar realidade última.  É um ponto de vista, um vértice de observação, uma linguagem equívoca, sempre em mutação, errante, volátil.

Sugira filmes, comente, interaja, critique.  Mais importante: veja os filmes sugeridos, isto é o mais divertido.

Inevitavelmente, muitas vezes o comentário pode induzir expectativas ou "roubar" alguns prazeres da degustação às cegas da película.  Sugiro, sempre, que veja primeiro o filme e, em seguida, leia o comentário.


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